[Macronoroeste-campinas] [Eli dos Santos Fernandes] CIÊNCIAS COM FRONTEIRAS: A EXCLUSÃO DAS HUMANIDADES PELO MEC

Eli Fernandes fernandeseli em gmail.com
Domingo Janeiro 20 09:48:03 CET 2013


Ciências com fronteiras: a exclusão das Humanidades pelo MEC

por Alyson Freire

Como um veículo idealizado por cientistas sociais, e, mais importante,  
feito a partir dos conhecimentos aprendidos nas Ciências Sociais, a Carta  
Potiguar não poderia deixar de se manifestar a propósito da suspensão da  
liminar que determinava a inclusão dos cursos da área de Ciências Humanas  
no programa Ciência Sem Fronteiras do Ministério da Educação (MEC). A  
decisão do Tribunal Federal da 5ª Região eo entendimento do MEC sobre a  
natureza do Programa devem ser não apenas lamentadas e repudiadas, mas,  
como convém a postura das Humanidades, analisadas e discutidas. Muito  
embora, bastasse para verificar o déficit em Humanidades no Brasil  
confrontar a realidade social do país e as percepções enviesadas e  
estreitas sobre esta, e, assim, constatar, com certa melancolia, os enormes  
desafios e incompreensões que existem acerca das questões públicas.

A indignação gerada não pode, porém, embotar a reflexividade exigida para  
produzir, de uma só vez, um entendimento claro do que está em disputa no  
CsF e, sobretudo, uma crítica aos pressupostos tácitos que o presidem.  
Afinal de contas, as Ciências Humanas notabilizam-se precisamente por  
constituírem um tipo de trabalho intelectual cujo cerne consiste em sua  
capacidade ímpar de elaborar autorreflexão crítica, a partir da qual a  
sociedade pode dispor das ferramentas para pensar a si mesma como problema  
e fenômeno humano, aberto e contingente, e, desse modo, entender por meio  
de que processos sociais e históricos as coisas se tornaram de uma forma e  
não de outra.

A posição do MEC ea interpretação da Justiça não são simplesmente neutras e  
técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que expressam, por um  
lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e, por outro, concepções  
e valores acerca das classificações das ciências eo papel destas no  
interior de um projeto determinado de sociedade e desenvolvimento.

A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do  
Ciências sem Fronteiras ou que áreas devem ser priorizadas no financiamento  
de bolsas, intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito  
da visão de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e  
cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar uma  
determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a concepção de  
certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa polêmica resume-se  
a questão de definir os parâmetros pelos quais a sociedade deve ser  
organizada e estruturada para atingir os tão almejados fins do  
desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país ea vida das pessoas devem  
trilhar para alcançar um estágio elevado de bem-estar humano, segurança,  
conforto e liberdade.

Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no Ciências Sem Fronteiras?  
Ora, uma ideia redutora e estreita de "desenvolvimento" que o identifica  
prioritariamente com crescimento econômico e progresso tecnológico puro e  
simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade desenvolvida é  
sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e criativa de  
indústrias e empresas, aumento da renda per capita e da disponibilidade de  
recursos humanos hiperqualificados do ponto de vista técnico, etc.. Sem  
satisfazer esses indicadores e critérios uma sociedade não pode  
considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta concepção tecnicista de  
progresso.

É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas divisões  
adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse paradigma, as  
Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas para fomentar as  
condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de progresso porque seus  
resultados e inventos podem ser diretamente aplicados e apropriados pelo  
Estado e pelas empresas, segundo, obviamente, os interesses estratégicos de  
dominação política, militar, social e econômica. Por isso, a elas  
reservam-se as melhores oportunidades de recursos e investimentos.

O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos no  
campo das ditas "ciências duras" ganha prioridade sobre todos os demais por  
conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições de apoio e  
fomento com uma determinada visão de progresso, assim como pela força dos  
interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo  
técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para manter  
sua governabilidade – esse comprometimento pode ser observada no conjunto  
de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por exemplo a  
construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e  
formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de  
desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e  
Mercado) neste processo. Elas seriam "ciências moles", imprecisas e  
teóricas, eo progresso necessita de "ciências duras", fálicas e masculinas,  
as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de serem  
suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento numa  
sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e androcentrismo  
na ideia de "ciências duras e moles" não é nada gratuita e acidental – o  
que reforça o argumento de a ciência existe num contexto de valores,  
representações e repertórios culturais.

A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para obter o  
devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem mais o  
resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e  
compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do  
que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O valor e  
as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e  
hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da  
potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas sobre  
progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo papel que  
elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a finalidade de  
atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do crescimento econômico  
– PIB, renda per capita, etc..

Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica e  
biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o mercado e  
as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios técnicos e  
humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento econômico de  
uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da formação de quadros  
hiperqualificados para o mercado e suas necessidades.

O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é  
superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção de  
desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente expressa  
no Ciência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências Humanas do CsF é  
resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista de conceber o  
progresso de uma sociedade. Nesta concepção de desenvolvimento, o sucesso  
de uma sociedade é medido pela elevação das riquezas que um país produz  
mais do que a forma eo grau com que ele a distribui; mais pela quantidade e  
exploração de recursos que ela capaz de realizar do que pela qualidade dos  
serviços públicos básicos que oferece; mais pela industrialização do que  
pelo impacto que ela causa nas condições ambientais e de existência das  
pessoas; mais pelo progresso tecnológico e quadros qualificados que possui  
do que pelo grau de participação política e social das pessoas na vida pà  
ºblica.

O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia  
unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento de  
outros indicadores qualitativos e sociais ligados ao que o economista  
Amartya Sen chamou de expansão das "liberdades substantivas" e das  
capacitações para o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen,  
desde as liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de  
condições para evitar subnutrição ea mortalidade precoce e capacidades de  
promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida política da  
sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).

Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia,  
defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de expansão  
das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as Ciências Humanas  
possuem um papel central e pertinente como "indutoras" das condições de  
desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das liberdades reais e na  
efetivação das capacidades humanas são resultados, em larga medida, de  
fenômenos humanos, isto é, de processos, instituições e estruturas sociais  
que modelam o destino das pessoas, suas chances de vida e oportunidades.

Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram, de  
maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e restrições que  
impactam enormemente o exercício dos direitos eo desenvolvimento das  
capacidades pessoais, então, a contribuição das Ciências Humanas é  
indispensável e inestimável para reverter tal quadro. O entendimento, com  
clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a reprodução da pobreza,  
da violência, da ineficiência institucional, os conflitos entre grupos, a  
exploração e injustiça econômica, os dramas interpessoais, a desigualdade e  
marginalização social, a privação de direitos em razão de estigmas e  
preconceitos, entre tantos outros, somente é possível mediante um  
consistente conhecimento e pesquisas pertencentes ao campo das Ciências  
Humanas. Esses conhecimentos podem ser convertidos em políticas públicas e  
reformas políticas. No entanto, a contribuição das Ciências Humanas não se  
esgota em oferecer informações úteis que servirão de matéria para políticas  
sociais.

As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável de  
desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de vistas  
morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a noção de  
desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades subjetivas e causais  
do comportamento e pensamento humanos, situando-os histórica e  
socioculturalmente, é o seu principal mérito. O esclarecimento que as  
Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento não tanto da ordem da  
previsão e do controle dos fenômenos mas da reflexividade dos sujeitos  
sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações – o que pode servir tanto numa  
escala individual quanto, também, numa escala coletiva para governos  
comprometidos com reformas e movimentos sociais engajados na luta por  
transformações sociais.

Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas do  
CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do  
comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e  
fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este  
comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível acerca  
do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em particular  
para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas sociais  
responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior emancipação,  
liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar os pressupostos  
tácitos que governam as tentativas políticas de superação e solução desses  
mesmos mecanismos e estruturas.

De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas contribuem  
com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas podem  
fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo sobre os  
fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e, também, acerca  
das implicações dos valores, compreensões e aspirações em nome dos quais  
esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O investimento em  
conhecimentos orientados para a explicação dos fatos humanos e para o  
esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos assumem e praticam em  
suas percepções e aspirações é um fator indispensável para qualquer  
sociedade que se pretenda desenvolvida num sentido mais pleno da palavra.  
Engenharias e tecnologias ajudam a construir e fazer crescer um país, mas  
não produzem por si mesmas compreensões capazes de impulsionar um processo  
de autoentendimento sobre o país, seus dilemas e ambições.

A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa Ciências sem  
Fronteiras abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos  
rumos que o Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de  
desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão  
de "pensar e entender o Brasil" para além das categorias econômicas mais  
redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco ultrapassado, é  
antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e ameaçador.

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Alyson Freire

Professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências  
Sociais - UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta  
Potiguar. Contato: alysonfreire em cartapotiguar.com



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Postado por Eli Fernandes no Eli dos Santos Fernandes em 1/20/2013 12:48:00  
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